Transcrevo aqui a entrevista que dei ao semanário Vida Ribatejana, com texto de Ana Filipa de Sousa e fotos de Pedro Castelo.
" - O tempo tem conseguido apagar o fatídico dia de Verão em que a sua vida mudou?"
O acidente foi à cinco anos. Estávamos a 14 de Junho e estava de saída para um dia normal de trabalho.Na altura dava aulas na Martinho Vaz de Castelo Branco, na Póvoa de Sta Iria, estava a fazer mestrado, trabalhava na editora discográfica Clave de Soft e a par disso, como fiz o curso de canto no Conservatório e também de Direcção Coral e técnica Vocal, também trabalhava nessa área. Dirigia grupos corais e dava aulas de técnica vocal...actividade na minha vida não me faltava. Tinha andado a auxiliar uma colega de Religião e Moral, que ia apresentar umas Marchas Populares na escola e era o dia da exibição.
Estava parada numa fila de trânsito, na estrada que vai para Vialonga, a 100 metros do portão da Central de Cervejas...O Trânsito estava parado, eu estava na fila, apareceu um camião desgovernado, bateu-me e tive o acidente...E não, não se apaga a memória nem se ultrapassa.
"- Na altura percebeu logo a gravidade da situação?"
Quando olhei para o retrovisor e vi o camião percebi que não tinha hipóteses de escapar ao embate...puxei o travão de mão para evitar o embate no carro da frente, e levei com a pancada toda na parte de trás do meu carro. Como sou uma pessoa que reage muito friamente a todas as situações, como na altura estava quente e ainda não sentia dores, tentei perceber quais eram os danos e o que é que se podia fazer...ainda passou um amigo que me perguntou se eu precisava de alguma coisa e eu acenei e disse que estava tudo bem...telefonei para a escola a dizer que tinha sofrido um acidente, e que não ia ser possível estar presente, mas que não era nada de grave. Depois telefonei para o meu marido para lhe perguntar se poderia ir ter comigo, mas que fosse devagar que não era nada de preocupante...acalmei o senhor do camião , que estava a gritar de volta do meu carro...o tempo foi passando, comecei a arrefecer e aí comecei a descompensar...comecei a ter dificuldades em respirar, a ter tonturas, e quando chegaram os bombeiros já estava a entrar em paragem cardio-respiratória...só me lembro de dizer que não conseguia respirar, de terem colocado a máscara de oxigénio, de me taparem com um plástico...ainda me lembro do meu marido chegar, de querer entrar no carro pelo outro lado e de os bombeiros dizerem que iam cortar o carro para me desencarcerarem.
Fui reanimada na ambulância, levada para o hospital de Vila Franca de Xira e quando entrei para a sala de reanimação já estava consciente. Depois de um raio-x e de oito horas nas urgências mandaram-me para casa com Ben-U-ron...como as dores não passavam, eu já não mexia os pés, tinha incontinência urinária e não me sentava, marquei uma consulta para o meu Ortopedista na Clínica de Santo António, em Sacavém. O médico quando me viu mandou-me imediatamente para neurologia...quando o neurologista me observou e viu que eu não tinha qualquer reacção nos membros inferiores, mandou-me para São José imediatamente onde estive internada em SO dois dias. Depois subi para a Unidade Vertebro-medular, onde fiquei internada, estava paraplégica e não havia nada a fazer...
" -O que sentiu nessa altura?"
Tenho tendência a desvalorizar muito as coisas que me acontecem e na altura ainda se colocava a hipótese de ser uma situação passageira...tentei não pensar muito nas consequências, foi a minha fuga para a frente...entretanto, deram-me alta de S. José, mandaram-me para Vila Franca de Xira , o meu hospital de referência para me internar e enviar para Alcoitão. Estive 4 horas na triagem e acabaram por me dar alta e me mandar para casa, algaliada. Nessa altura comecei a ficar preocupada...nem me sentava sequer...mas como nunca perdi tempo com futilidades e nunca tive paciência para aquela coisa do ai,ai , ai e do coitadinha, estava convencida que voltaria a andar...e porque ainda não sabia ao certo o que tinha, tentei levar as coisas para a frente e ser pragmática...a cadeiras de rodas veio emprestada inicialmente pelo centro de saúde, comecei a tentar sentar-me sozinha, vieram mudar-me a algália, o serviço de cuidados continuados de saúde, e da seguradora nem uma palavra porque não tinham feito a participação do acidente...até o auto de ocorrência vinha enganado...entretanto, como até para se ter um acidente é preciso ter sorte, não houve apoio de lado nenhum. Só me apareceu o perito da seguradora passado dois meses depois do acidente, só fui chamada para a primeira consulta da seguradora 3 meses depois e a assistente social da seguradora apareceu em minha casa quase três anos depois...
Tive de pagar a fisioterapia e consultas de urologia privadas, todos aqueles exames que os paraplégicos têm de fazer...tudo do meu bolso. Aprendi a algaliar-me e a colocar cateters sozinha. Isto tudo sem ordenado, porque o meu contrato de trabalho com o ministério da educação terminou a 31 de Agosto e cessaram os vencimentos e os abonos de família...a juntar a tudo o resto tem sido muito complicado. Quando se é homem é tudo muito mais simples, e isto não é uma questão de sexismo...eu tinha( e tenho) dois filhos menores e dois enteados, crianças pequenas na altura que ficaram muito afectadas e era preciso continuar a ser a mesma mãe porque eles espectavam isso mesmo, tinha de continuar a ser a mesma mulher para o meu marido, a mesma filha para os meus pais, a mesma irmã para os meus irmãos senão caíam todos redondos. E percebi que não podia desmoronar, pois cairia toda a estrutura...e tem sido assim, com todas as complicações...
"- Mas ainda foi ao estrangeiro numa tentativa de encontrar respostas, não foi?"
Sim, fui á procura de respostas ao estrangeiro, porque essa é a primeira coisa que se faz quando tomamos noção do que nos aconteceu...Fui a Inglaterra, a Barcelona e já cá fiz uma série de exames, cujos resultados enviei para Cuba e para Israel. Até aí sempre pensámos que seria uma situação passageira, porque só estava paralisada até aos joelhos...ainda andei com um andarilho e umas ortóteses e fazia todo o esforço para andar...só que há 3 anos houve uma regressão brutal que me deixou paralisada até à cintura. Depois de ter feito os exames às minhas custas, e de ter ido a uma série de neurologistas, foi-me dito que tinha uma lesão na medula, feita por uma pancada de chicote, que acontece quando as pessoas levam uma pancada por trás em cheio, e que corro o risco de ficar tetraplégica, porque a lesão é degenerativa...perceber que não há cura nem aqui nem na China foi muito complicado. Aí fui abaixo, revoltei-me, não só por mim, mas por toda a gente. Depois dispus-me a fazer um processo civil à minha conta, porque a seguradora demorou cinco anos a fazer a primeira proposta em termos indmenizatórios. Só o fez recentemente e neste momento está tudo em tribunal...e tudo isto é muito complicado e desgastante porque todo o processo de interiorização das mudanças que uma situação como esta impõe, ainda é passado de uma forma muito solitária em Portugal...
"- Isso significa o quê?"
A minha ida ao tribunal, para a minha primeira audiência do meu processo é um episódio que mostra bem como é que estas coisas ainda se passam no nosso país...pensei que o tribunal tivesse a hombridade de perceber que o autor do processo era paraplégico e mudasse o sítio da audiência, mas não. Quando cheguei tinha aquela escada imensa e eu disse ao meu advogado que ao colo não ia...Todos os deficientes motores sabem que uma das maiores e principais causas de mal estar para nos é sermos transportados ao colo, porque não deveria ser assim. Disse que não entrava, que não subia ao colo, o meu advogado foi colocar a questão ao Oficial de Diligências, que falou com o juiz, que se prontificou a fazer a audiência no passeio, se necessário ...
"- Isso mostra que, apesar de tudo, ainda estamos muito longe do ideal no que toca à eliminação de barreiras?"
Muito longe mesmo...nestes cinco anos tenho-me batido imenso contra a falta de acessibilidades. Porque esta questão tem um peso social muito grande e a verdade é que as pessoas ainda não estão habituadas a ver uma pessoa em cadeira de rodas a tentar ser independente. As aberrações são enormes, rampas sem qualquer utilidade, mobiliário urbano espalhado pelo passeio que, entretanto, não tem largura para as cadeiras de rodas passarem...Depois, há sempre aquela coisa do coitadinho, não nos mexemos, ficamos sozinhos em casa, os amigos desaparecem porque as pessoas não vivem para o sofrimento dos outros...e é por isso que tenho uma postura muito clara. Não me desiludo com as pessoas porque não me chego a iludir. Ficaram os bons amigos, os verdadeiros e a esses agradeço. Quando os que se afastaram me perguntam como estou, respondo que estou paraplégica, mas que isso já sabiam...
"- Ainda não há uma cultura de verdadeiro apoio solidário?"
Para muita gente fazer solidariedade é contribuir com dinheiro no Natal para apoiar uma campanha qualquer, mesmo que no apartamento ao lado viva uma pessoa acamada que só precise apenas e somente de alguém para conversar durante cinco minutos...perante este cenário, ou se tem dinheiro e se paga a um psiquiatra e a um psicólogo ou não se tem e tudo isto, todas as mudanças que isto impõe na nossa vida, são passadas e vividas de uma forma muito solitária...Houve uma altura em que chorava sozinha, chorava muito, depois dizia que não ia a lado nenhum e que não queria sair de casa. Agora digo que quero ir e quando não posso ter acesso, peço o livro de reclamações.
"- É uma postura que se aprende com o tempo?"
Não...é muito complicado. falo com gente que já teve o acidente há 17 anos e pura e simplesmente ainda não passou para esta fase...e conheço gente que depois do acidente casou, teve filhos e vive a sua vida...se temos problemas... temos muitos. Chegar a esta fase, do quero ir, tem a ver com uma viagem interior que tem que ser obrigatóriamente feita. Estes cinco anos serviram-me para isso mesmo...o facto de estar fechada em casa e a minha vida ter mudado radicalmente...no fundo, de ter morrido, porque eu morri há cinco anos. Morri naquele acidente e renasci. Renasceu uma outra pessoa, que muitas vezes não reconheço...é uma viagem interior que se tem que fazer...tudo isto é muito difícil de gerir...até com a família...porque a reacção normal das pessoas à minha volta é perguntarem-me o que devem fazer...e eu fico sem resposta...é muito complicado exteriorizar e gerir tudo isto porque também percebo que há um grande sentimento de impotência por parte das pessoas que me rodeiam e que até chega a ser mais complicado para quem nos rodeia do que própriamente para nós.
"- Como se lida com tudo isso?"
Não se lida, vai-se lidando. É um dia a seguir ao outro, mas tem de haver um corte radical com a vida passada. Fazer o luto e renascer...as pessoas ficam muito irritadas comigo por dizer que morri, mas é a formula para sobreviver sem enlouquecer...do que me serve a mim dizer que tenho saudades de correr na praia ou de sentir a areia quente nos pés, de dançar ou correr, se si que nunca mais volto a andar? Serve-me para ficar sentada a chorar e a lamentar. Claro que tenho momentos maus...mas é preciso enterrar o passado e construir uma nova pessoa. É uma forma de viver...não se leva...porque o acidente é o momento...em que a vida nunca mais volta a ser a mesma. As estatísticas que contabilizam quem morre na estrada esquecem quem ficou paraplégico, tetraplégico, as que ficaram vegetais, as que ficaram completamente sozinhas ou para sempre em lares, porque a família os abandonou, esquecem as famílias que ficam completamente desagregadas.
In" Vida Ribatejana" , ano 92º, nº 4566 de 11 de Novembro de 2009
Manuela
ResponderEliminarLi a tua entrevista e deixa-me dizer-te que tu acima de tudo és uma grande mulher, grande lutadora e corajosa.
Tenho seguido os teus posts aqui no blog com alguma regularidade e vejo que o acidente que tiveste não diminuiu a Manuela Ralha, combativa, reinvindicativa que conheci nos tempos da JS.
Hoje continuas a exercer um papel de denúncia dos problemas que sentem as pessoas com problemas de mobilidade, da forma como o Eatado e as diversas entidades os tratam e isso é de uma validade enorme.
Beijinhos
Luís Gaspar (Sintra)
Estou impressionada com sua postura e coragem. Postura que muitas pessoas, com duas pernas boas andando por aí não tem.
ResponderEliminarUm grande abraço
Olá amiga Manuela
ResponderEliminarDepois de ler o que li, ainda reforça mais o que penso, a Manuela Ralha é uma grande senhora uma mulher de coragem como diz o povo, cultissima e penso que tem ainda muito que dar á nosso sociedade, e o tempo o irá demonstrar, quem sabe se o seu exemplo de grande coragem será a vergonha dos politicos que temos que nada fazem para que estas coisas mudem.
Vamos com coragem enfrentar este encolher de ombros atroz e acordar consciencias
Tudo de bom e fique o melhor que lhe humanamente possivel...
Cumprimentos
Gallobar
Depois de ler tudo que ja sabia, fiquei com muito orgulho de ser tua amiga e sabes porquê???? Porque te admiro mais e mais a cada dia que passa... mulher-coragem.Que eesa força que sentes te acompanhe sempre minha linda amiga e mais uma vez com muito orgulho de pertencer a esse rol de amigas que embora não presente jamais te esquece.
ResponderEliminarBeijinhos da:
Ildinha
Um beijo meu!
ResponderEliminarManuela...estou simplesmente estarrecida, é um grande privilégio ter uma amiga como tu, senti-o na primeira troca de palavras, senti-te tão verdadeira...tão humana, acreditarás se te disser que não imagino a nossa relação desvanecer-se, esta não é de forma alguma uma frase dita de ânimo leve, ou um pensamento precoce imaturo adolescente.
ResponderEliminarGosto tanto, mas tanto de ti, e este meu gostar de ti, possui tantos ingredientes pelos quais me tento reger...espero que sintas este meu gostar de ti quando te abraço, um dia perco a timidez e digo-te.
Aquele abraço e mil beijinhos
Verónica
Manuela,
ResponderEliminarAcabei de ler a entrevista e mais uma vez estou incrédula, como é que isto é possível de acontecer num país europeu em pleno Séc XX?
Entretanto, estou com uma dúvida: Tu estás em casa, a tua profissão?
Beijinhos
Olinda,estou em casa, estive 4 anos de baixa, sem receber, baixa pela seguradora com um aincapacidade temporária absoluta e depois sai com um relatório da Junta médica da seguradora com uma incapacidade absoluta permanente para o trabalho habitual...portanto, nem me pagam, nem posso trabalhar...bom, não é?! e ante sque protestes, já escrevi para todo o lado, já fui à segurança social, mas as leis são mesmo assim... Beijos, obrigada por me leres...há tantas coisas que se passam neste país e que toda a gente desconhece...e eu não sou dos casos piores...
ResponderEliminarManuela
ResponderEliminarÉ com profunda admiração por si que lhe escrevo estas palavras.
A sua história é uma história de tristeza e coragem, exemplo evidente do quanto a vida é imprevisivel e do quanto podemos vir a ser chamados. por ela, a demonstrar. As circunstancias em que tudo aconteceu, após o seu acidente ( em termos de assistência médica, responsabilidade,custas e direitos) é qualquer coisa de inacreditável! Mas lamentávelmente é como diz, acontece muita coisa neste país que a maioria das pessoas desconhece. Sou enfermeira e por isso, conheço algumas histórias bem parecidas com a sua.
Mas o que lhe quero dizer é que pessoas como a Manuela, que reagem à adversidade com essa garra e determinação, são um exemplo, uma lição de vida a que todos nós deveremos recorrer sempre que estivermos tristes ou desanimados.
Continue a ser Forte, como é! Permita-me que respeitosamente lhe faça uma vénia, tamanha é para mim a sua grandeza.
Um abraço
Olá Manuela!
ResponderEliminarDescobri o seu blog,depois de ler o da Isabela.
Penso que nestes casos,se vive ao segundo,sabe-se aproveitar tudo da vida,o bom e o mau.Apesar de todas as dificuldades pelas quais passa,é uma guerreira porque é o PILAR de uma família inteira e fará tudo dentro e fora de si para não derrubar.É um exemplo e todos devem orgulhar-se de si.Além disso,deve orgulhar-se também por ser uma mulher lindíssima e ter 4 crianças que devem ser educadas maravilhosamente,pois tem-na a si :)
Jocas gordas
Lena
Oi Manuela!
ResponderEliminarCheguei aqui por indicação do António Gallobar.
Que indicação!
Dizer o que a você ?
Voc~e tem tudo ai dentro, todos os ingredientes que necessita pra ser quem é, para escrever a história de vida que vem escrevendo, para testemunhar sua coragem, força, fé e toda a sua fragilidade com a convicção de uma guerreira que sabe que nada termina assim. Sempre há muito o que se fazer.
Sempre há muito o que mudar, ultrapassar, vencer, acreditar!
Dizer o que a você?
Lições de vidas são bençãos que vivemos ou que nos permitem de alguma forma compartilhar ou tomar conhecimento.
Obrigada por dividir a sua lição. Bela lição!
Com todo carinho. Um beijo grande!
Nunca se vá abaixo! Felizmente nunca passei pela sua situação mas lidei de perto com situação semelhante de um GRANDE AMIGO.
ResponderEliminarTal como ele, a Senhora é um exemplo de força, coragem e determinação! Desejo-lhe tudo de bom, que se faça justiça e a vida a recompense com toda a felicidade do Mundo!
Força e Paz,
Ricardo