terça-feira, 13 de julho de 2010

Reportagem - Os meus caminhos estão cheios de montes Evereste

jornal.publico.pt/noticia/11-07-2010




Durante um dia, pusemo-nos no lugar da pessoa com mobilidade reduzida. Foi um inferno.
Por Marisa Soares
O Pedro, 33 anos, tem paralisia cerebral e um grau de dependência de 90 por cento. No gabinete do Laboratório Nacional de Engenharia e Geologia, em Lisboa, onde trabalha como investigador, circula à vontade com a cadeira de rodas eléctrica, mas nem sempre foi possível nos sítios por onde passou. Hoje a escola dele é mais acessível, mas ainda não é assim em todos os estabelecimentos. "A sociedade não aprende", diz, admitindo que é pessimista.
Ou será realista? A julgar pelo diagnóstico traçado por Celeste Costa, dirigente da Cooperativa Nacional de Apoio a Deficientes, o Pedro tem razão. "A maior parte das escolas não está preparada para receber crianças com deficiência motora. As bibliotecas são, quase sempre, no primeiro andar sem elevador. Em grande parte dos estabelecimentos, não há casas de banho adaptadas", afirma, sentada na cadeira de rodas que usa há seis anos, à custa da poliomielite que a atingiu aos seis meses. Há melhorias, admite, mas não chegam. "Ainda há muito a fazer, sobretudo no campo das mentalidades."
Há experiências que podem ser descritas, mas que só são compreendidas depois de passarmos por elas. E isso foi uma das certezas com que fiquei depois de me pôr no lugar destas pessoas, sentando-me numa cadeira de rodas. A vida fácil acabou logo à saída de casa. Quando falo da grande inclinação da rampa de acesso ao meu prédio, o experiente Pedro sabe do que me queixo. "A tua rampa é do estilo lança-rockets." Descer por ali, sozinha, em cima de uma cadeira de rodas implica, na certa, sair disparada para o outro lado da estrada, ou antes disso espalhar-me ao comprido. Então, para que serve, se não facilita a passagem? Aí está uma boa pergunta.
Pedro aprendeu há muito que a simples colocação de rampas não garante nada. Para isso, estas estruturas teriam de cumprir a lei - não ter mais do que seis a oito por cento de inclinação - o que nem sempre acontece. Mas esta é a mesma lei que permite aos condomínios vetar a instalação de uma rampa no edifício. "A rampa ainda é inestética para quem não precisa dela", afirma. E entre a estética e a função adivinhem lá quem ganha...
Barreiras sucedem-se
"Acusam-me de demagogia", conta Celeste, "quando desafio os políticos a irem trabalhar um dia de cadeira de rodas, para verem como é." Têm medo, talvez. E eu percebo-os, por um lado. Quando me disseram "Vais alugar uma cadeira de rodas e andar por aí", também tive medo. Mas admito que nada melhor do que sentir na pele as dificuldades, para compreender a vida destas pessoas.
O desafio é passar um dia na cadeira de rodas e tentar cumprir a rotina diária. Alugo a cadeira (já depois de ter experimentado uma emprestada), e estaciono-a num canto da casa, à espera. Só com a ajuda de alguém, um "anjo da guarda"me lanço à aventura.
Os problemas começam ainda antes de chegar à rua. O apartamento, de portas e corredores largos, passa na prova (a casa de banho também é adaptável), mas, à saída, o primeiro obstáculo: o elevador, demasiado apertado. Retiro o apoio da cadeira para os pés e só assim consigo entrar e descer do oitavo andar ao rés-do-chão.
A partir daqui, as barreiras sucedem-se. Três degraus para chegar à porta do prédio e mais cinco degraus para chegar à estrada. Ao lado, a tal rampa "lança-rockets". Tento descer. "Essa rampa não é indicada para cadeira de rodas", diz-me a administradora do prédio. Fico a saber que, afinal, a rampa está ali para permitir a circulação das motas que estão à venda numa loja do rés-do-chão. Dúvida esclarecida.
Então, como entram e saem do prédio as pessoas em cadeira de rodas? "Bem, podem ir pela garagem, [mas] só cá vem uma senhora idosa em cadeira de rodas, de vez em quando."
A lei permite que o meu prédio, construído antes de 1997, só seja acessível em 2017. E se as obras de adaptação forem "desproporcionadamente difíceis" ou caras, nem é preciso. Até lá, nota mental: não convidar amigos com cadeira de rodas para jantar.
Sigo viagem até ao comboio, que apanho diariamente. Encontro um jipe estacionado à saída da passadeira, em cima do passeio (que até é rebaixado, mas não tem pilaretes de ferro). Por isso, sou forçada a seguir pela estrada, lado a lado com os carros, em contramão.
Quando consigo voltar ao passeio, "tropeço" nas pedras soltas da calçada, nas caixas cinzentas que abrigam os contadores da electricidade e da água, e nas bocas-de-incêndio "plantadas" lá no meio. Para além disso, são muitos os passeios que não têm 1,20 metros de largura, como exigido por lei. É melhor regressar à estrada.
Transportes inacessíveis
Ultrapassado o caminho para a estação, tento apanhar o comboio. Dias antes, a operadora do Serviço Integrado de Mobilidade (SIM) da CP, que presta assistência no embarque a pessoas em cadeira de rodas, disse-me que a estação que utilizo - Barcarena, na linha de Sintra - não está abrangida por aquele serviço. Mesmo que estivesse, teria de pedir ajuda 48 horas antes, só nos dias úteis. Pouco prático. Talvez por isso, das 1015 chamadas que o SIM recebeu em 2009, apenas 88 pessoas pediram assistência.
No meu caso, afinal, a informação até estava errada. A estação de Barcarena está incluída no SIM, tal como 18 das 28 estações da linha de Sintra. A CP tem também um tarifário especial para acompanhantes de pessoas com incapacidade de 80 por cento ou mais, mas não nas linhas urbanas.
A composição chega, pára, e as portas abrem-se. A um primeiro degrau, afastado alguns centímetros da plataforma, segue-se outro, que me parece alto de mais, mesmo com ajuda. No período - curto - entre a abertura e o fecho de portas, fico paralisada e recuso entrar. Não sou capaz. A verdade é que, desde que uso o comboio, nunca encontrei alguém em cadeira de rodas. E algo me diz que não sou a única com medo.
"Deixei de usar transportes públicos há 30 anos", conta Jorge Falcato, 56 anos, paraplégico desde os 24. De casa, em Chelas, para o trabalho, no Campo Grande, este arquitecto desloca-se sempre num carro adaptado. "Senão tinha de vir de táxi", diz. Mas de táxi também não teria muita sorte. Em todo o país, há apenas 11 táxis adaptados. Nenhum deles em Lisboa ou Porto.
Alternativas? Para ir até ao centro de Lisboa, poderia utilizar os autocarros da Vimeca, que ligam vários concelhos limítrofes à capital, incluindo Sintra. Dos 232 autocarros, 107 estão adaptados. Também a Carris, em Lisboa, tem 320 autocarros com rampa de acesso a cadeira de rodas, num total de 752 veículos. Por mês, há cerca de 250 pessoas a utilizá-los.
O número reduzido não surpreende Pedro Oliveira. "Fiz as contas. Desde que o autocarro pára até que volta a arrancar, são pelo menos cinco minutos para o passageiro entrar com a cadeira de rodas. Mais três minutos para sair. Isto em hora de ponta, em Lisboa, é impensável", sublinha. "Aí, o factor de inclusão no design para todos vai por água abaixo."
Volto para trás, e peço boleia, de carro, para o trabalho. Até porque mesmo que tivesse ido de comboio e depois seguido no metro, não poderia sair nas estações que utilizo habitualmente, porque nenhuma tem acessibilidade. Das 46 estações do metro de Lisboa, apenas 27 têm acessibilidade plena (com elevador). Mesmo nestas, como é que se sai se o elevador está avariado?
Ter um carro adaptado parece ser a melhor solução. O problema é que perto do trabalho não há lugares reservados a estes veículos. "Mesmo quando há, os outros automobilistas não respeitam e ocupam-nos", diz Celeste Costa. Passando, com ajuda, o pequeno degrau à entrada do edifício onde trabalho, é fácil subir até à redacção, de elevador. Os corredores da sala são largos. Mas falta a casa de banho adaptada.
Vou entregar a cadeira, de carro, e volto de metro. Já não reparo nas pedras levantadas, nos passeios altos, nos degraus que, há horas, me pareciam um monte Evereste. "Não podes construir um mundo ideal", dizem-me os amigos. Será que um dia deixarão de ter razão?

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