Adriana Campos
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Na sequência da conversa com uma mãe cujo filho, ainda criança, amputara uma perna, usei, sem me aperceber, várias vezes a palavra 'coitadinho'. Falava de mãe para mãe, não tendo uma preocupação especial no vocabulário que usava, nem na postura assumida. Confesso que olhar para aquela criança, tão jovem e já sem um membro, me destroçava o coração. Analisando a situação com um certo distanciamento, tomei consciência de que muitas vezes não cumprimentava o João tal como fazia com outras crianças, relativamente desconhecidas como ele, porque aquele estado físico me perturbava profundamente. O termo 'coitadinho' não passou despercebido àquela mãe que, a determina altura, me fizera compreender que o filho cortava relações com quem o tratava como coitadinho e que ficava furioso sempre que usavam semelhante termo. Nesse momento percebi, em primeiro lugar, que estava a ser uma péssima ouvinte e, em segundo, que não era só o filho mas também a mãe que não suportava aquela deplorável palavra.
Infelizmente, muitas pessoas continuam a dividir o mundo em dois grupos: os 'normais' e os 'coitadinhos'. Dentro deste último grupo, colocam todos aqueles que possuem qualquer tipo de handicap e que, por isso, consideram ter menos condições para serem felizes. Esquecem-se de múltiplas pessoas que, apesar de terem sérias limitações de ordem física e/ou psicológica, estão bem integradas socialmente e tiram mais proveito da vida que muitas outras, que até se enquadram no perfil dito normal.
A propósito desta situação, lembrei-me de uma outra contada por uma amiga com paralisia cerebral. Dizia ela, com muito pesar, que por vezes até lhe era penoso sair à rua, pois era olhada como 'a filha de um deus menor'. Havia mesmo pessoas que se benziam quando olhavam para ela e muitas verbalizavam mesmo: 'Coitadinha!' Para uma pessoa com excelentes capacidades cognitivas, detentora de duas licenciaturas, ser enquadrada no grupo dos 'limitados' é de uma dureza atroz.
Não só o que dizemos, mas também a forma como olhamos os outros, pode determinar o seu maior ou menor bem-estar. Por esta razão, torna-se urgente alterar a nossa forma tacanha de olhar o mundo e os outros. Temos de abolir categorias reducionistas e preconceitos. Temos de interiorizar, de uma vez por todas, que o mundo não se divide nos normais e nos outros, mas que todos temos pontos fortes e fracos, independentemente do grupo em que consideramos estar enquadrados.
Os nossos gestos e as nossas palavras podem ajudar os que, de alguma forma, são mais diferentes do que a maioria a sentirem-se mais iguais e por isso a evitarem o isolamento. Um olhar de pena pode ser eventualmente mais penalizador do que o próprio termo 'coitadinho'.
A revolta daquela criança pelo facto de os pais autorizarem a amputação da sua perna (note-se que não havia outra alternativa para além desta), a sua atitude agressiva face às figuras parentais, a sua dor profunda por não poder voltar a caminhar com os seus dois membros são sentimentos perfeitamente ajustáveis à situação. De facto, a palavra 'coitadinho' era a que menos se ajustava ao discurso daquela mãe em sofrimento... "
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