quarta-feira, 7 de março de 2012

Cidadãos em cadeiras de rodas são içados pelos braços para a fotografia do cartão do cidadão




Antonieta Monteiro, 37 anos, sofre de esclerose múltipla e desloca-se em cadeira de rodas. Recentemente viveu uma situação fora do normal quando foi fazer o cartão do cidadão na Conservatória do Registo Civil de Tomar. Teve que ser elevada da cadeira de rodas, pelos antebraços, para ficar com o rosto à altura da objectiva da máquina. E a operação teve que ser repetida cinco ou seis vezes, até que a fotografia ficasse em condições.

O insólito caso aconteceu no dia 9 de Fevereiro. Antonieta Monteiro foi tirar o cartão do Cidadão integrada num grupo de utentes do Lar da Junceira, onde está internada. Viu o procedimento suceder à primeira pessoa do grupo e não quis acreditar que o mesmo lhe fosse acontecer quando chegasse a sua vez. Mas aconteceu. “Foi uma experiência surreal. Não estava à espera de passar por uma situação tão absurda. Quando vou a um local público gosto de conservar o meu amor-próprio”, conta.

O Governo impôs a obrigatoriedade de efectuar o cartão do cidadão, decretada por lei, no sentido de aumentar “de forma significativa a segurança dos documentos pessoais”, regendo-se a sua utilização por parâmetros fixados na União Europeia. Por este motivo, passou-se a fazer a recolha dos dados biométricos, como a imagem facial, dispondo os equipamentos das características necessárias para a respectiva validação. Mas o que parece simples, nem sempre o é, tal como O MIRANTE descobriu pelo testemunho de Antonieta e de outras pessoas portadoras de deficiência física.

“Atendendo às exigências de qualidade das fotografias, este equipamento é particularmente sensível revelando-se, em situações excepcionais, mais morosa a captura da fotografia, nomeadamente no que se refere ao alcance da distância precisa entre o kiosk e o cidadão”, justifica o Ministério da Justiça respondendo a O MIRANTE. Antonieta não aceita. “Senti-me altamente estúpida. O meu problema principal é que a nossa sociedade podia fazer melhor”, atenta estupefacta com a placidez com que os outros aceitam que estas situações aconteçam. Aliás, o procedimento repetiu-se com todas as pessoas do grupo que se deslocavam em cadeira de rodas, e ela foi a única a reclamar.

Na resposta às perguntas colocadas o Ministério da Justiça, esclarece que o Instituto dos Registos e do Notariado dispõe de dois tipos de equipamentos que se adequam aos cidadãos com necessidades especiais. Um quiosque fixo que dispõe de um “elevador” que permite ajustar o equipamento à altura do requerente, viabilizando a captura de fotografias a uma altura aproximada de 1,20 a 1,30 metros, por exemplo, para cidadãos que se deslocam em cadeira de rodas e de baixa estatura e um Kiosk móvel/portátil, para situações de cidadãos acamados em hospitais, instituições de solidariedade.

O MIRANTE visitou as conservatórias de Tomar e Entroncamento e a loja do cidadão de Vila Nova da Barquinha e verificou que os quiosques fixos instalados não dão resposta a casos como o de Antonieta e outras pessoas em cadeira de rodas. As funcionárias, quando confrontadas com a eventualidade de terem que fazer o cartão do cidadão a uma pessoa em cadeiras de rodas responderam que a máquina não está preparada para isso e sugeriram que a pessoa trouxesse uma almofada de casa (para ficar mais alta na cadeira de rodas) , caso contrário a pessoa teria que ser efectivamente elevada à força de braços até ficar à altura necessária.

O Ministério diz que estranha a situação. “Não é prática normal nem necessária para a captura das fotografias, pelo que o IRN irá averiguar se existiu deficiente utilização do equipamento”. Simultaneamente, prometeu reiterar junto de todos os balcões de atendimento as práticas correctas a observar nestas situações. Mas algumas funcionárias contactadas são peremptórias. “A máquina é mesmo assim, não desce mais, pelo que não pudemos fazer nada a não ser tentar ajudar o mais possível”.

“Esqueceram-se de nós mais uma vez”

Não é só a captura da foto que se revela um constrangimento para quem se desloca em cadeira de rodas. Eduardo Jorge, 49 anos, mora na Concavada, Abrantes e ficou tetraplégico há 20 anos, na sequência de um acidente automóvel. Quando foi fazer o cartão do cidadão, na Conservatória de Abrantes, debateu-se com múltiplas dificuldades, uma experiência que conta no facebook em “nós tetraplégicos”.

“O atendimento é simpático mas logo ao entrar o aparelho está a poucos metros de uma parede. Se eu fosse com a minha cadeira de rodas eléctrica manual já não era possível entrar”, começa por relatar. Como é alto não teve tantos problemas com a fotografia mas o pior estava para vir quando lhe foi pedido que colocasse os dois indicadores em simultâneo em pontos afastados para recolha das impressões digitais. “Temos que pedir ajuda porque requer que projectemos o corpo para a frente. Além disso, são máquinas muito sensíveis e acusam qualquer falha. Neste caso, teriam que ter um dispositivo manual para colocarmos os dedos em simultâneo mas, mais uma vez, esqueceram-se de nós”, acusa.

Para além da dificuldade de tudo isto se passar num espaço bastante exíguo, a maioria dos deficientes não consegue fazer a assinatura no papel que lhes é distribuído e que deve ser assinado no interior de espaço definido. “A maioria dos tetraplégicos tem uma caneta própria, de fácil escrita mas tem que ser com aquela que tem uma ligação remota o que leva a dificuldades”, refere o dinamizador do blogue tetraplegicos.blogspot.com. Para Eduardo Jorge, este caso revela inércia pois os direitos dos deficientes deveriam ter sido acautelados. “Temos excelentes leis mas não são cumpridas, não são. Como é que pode acontecer uma situação destas a nível nacional”, interroga.

“Até à presente data, já foram emitidos cerca de 6 milhões e 800 mil de cartões de cidadão”, informa a tutela. O IRN refere que se tem deparado “com várias situações particulares no que respeita às necessidades de cidadãos com mobilidade reduzida” mas não tem notícia de constrangimentos na recepção e tramitação dos processos destes cidadãos, designadamente no que se refere à captura das fotografias”. Os testemunhos de Antonieta Monteiro e Eduardo Jorge levam a crer que os “constrangimentos” existem mas que não ficam registados.

Fonte: O Mirante

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